sexta-feira, 22 de abril de 2016

Dizem que ser sensível é coisa de “mulherzinha”

Quando eu era pequena eu conheci cedo a encheção de saco dos pequenos machistinhas. Nas escolas que visitei apareciam cada vez novas maneiras de humilhação pelo único fato de ter nascido “mulherzinha”. Falavam mal do meu cabelo, crespo; da minha altura, porque eu era maior que eles; do meu sotaque, mistura entre o nordeste e todo o resto do nosso Brasil; da minha inteligência, porque eu era mais esperta; da minha afeição esportiva, porque eu corria mais rápido; do meu jeito de andar e falar, porque eu não era tímida; etc. Ao mesmo tempo eles pegavam no pé das garotas que não eram tão espertas, das que não eram tão esportivas, das que eram tímidas, das que não tinham sotaque além do local, das baixinhas, das gordinhas, das magrinhas, das negrinhas e das branquinhas. Como se qualquer característica fosse motivo para chacota quando você nasce garota.

Isso teve resultados, além de ter deixado algumas pernas alheias roxas pelo caminho, me endureci, me fechei, me blindei totalmente contra essas palavras. Eu me protegi de todo esse ácido e corrosivo veneno que vem sendo destilado a milênios e repetido por gerações, uma após a outra sem muita criatividade. Aprendi a ignorar, a não escutar, a ter ouvidos e coração, mais que seletivos, pedrificados. Passei a julgar as pessoas pelas primeiras palavras que proferiam e a classifica-las em pessoas e sombras, sendo que essas eram mudas para mim como um muro de cemitério. Aprendi a não dar segunda chance. Aprendi a condenar vidas em três minutos.

Os anos foram passando, o machismo não mudou, então eu continuava usando minhas armas de defesa. Fechada na minha fortaleza, quando ouvia o murmúrio de uma garota falando alguma besteira por puro reflexo de repetir palavras vazias, eu me afastava no maior silêncio que podia para que ela não percebesse a minha ausência até o momento que isso não fizesse mais diferença. Se o mundo é machista, se o sistema é machista, se tudo que eu vejo tá errado, então o mais sensato a fazer é criar um mundo só para mim, no meu silêncio, andar na beirada e evitar companhias machistas ácidas, garotos ou garotas, evitar ter contato pessoal e pronto, assim o meu mundo não vai ser machista. Certo?

Bom, é claro que esse método até funcionou por um tempo, como vocês podem imaginar, eu consegui sucesso com alguns momentos de paz na minha vida. Mas toda vez que eu saía na rua à noite, toda vez que eu ligava a tevê no horário do jornal, da novela, do filme, do seriado juvenil, toda vez que ia fazer aula de educação física, de literatura, de química, de matemática, de português, de história, toda vez que eu assistia um filme “americano”, Toda vez que ia ao ponto de ônibus, pegava o trem, o metrô, andando de bicicleta, toda vez que lia um livro “romântico”, de aventura, de suspense, de filosofia, toda vez que ia na balada, no shopping, no parque, na praia, toda vez que pensava no vestibular, na vida, na carreira, toda vez que ouvia música internacional, funck, axé, samba, sertanejo, MPB, rock, toda vez que falava sobre política, sociologia, história, toda vez que ia comprar roupa nova, sapato, carne, pão, toda vez que a família se reunia no natal, no enterro, no aniversário, no casamento, toda vez que um cara queria ficar comigo, com minha amiga, toda vez que eu queria ficar com um cara, toda vez que assistia à um clipe musical de hip hop, ai e o etc?!. 

Toda vez que eu interagia com o mundo exterior alguma coisa não ia bem, eu sabia que algo não estava certo. Sentia algo fervendo dentro de mim, seria isso uma náusea? Uma taquicardia? Uma revolta antiga e genética? Um sentimento? Uma razão? Existe uma palavra para esse negócio horroroso?

Sim, descobri que existe. O nome desse mal-estar é revolta. Provocada por uma injustiça óbvia – leia-se descarada – e por muito tempo perpetuada por falhas culturais, ela é um dos inúmeros sintomas de uma síndrome da moral que afeta todas as vidas femininas diretamente e todas as vidas humanas em mais de um aspecto. Mas ao contrário das doenças do corpo, ela pode salvar uma vida e ao invés de destruí-la. A revolta nasce devagar, ela vem silenciosa, calma, numa tranquilidade de quem sabe a segurança dos seus próprios argumentos, então espera. A revolta é clara como o sol de Pernambuco ao meio dia, ela não precisa de artimanhas para abrir espaço, ela é alimentada por fatos, que infelizmente ocorrem diariamente. Não posso precisar quando ela começou, mas um dia não pude negar sua presença. 

Ela veio silenciosamente para me dar voz. Então eu falei! Gritei! Berrei! Extravasei! Incomodei! Ridicularizei! Ataquei! Vociferei! Argumentei! Desabafei! Rebati! Compreendi. Aprendi que meu silêncio não dava paz, alimentava de forma passiva o sistema do qual eu fingia me proteger. Descobri que minha falta de voz também era uma forma de machismo, uma forma de violência, se eu preciso estar em silêncio para não me encontrar em alguma situação desagradável ou de perigo no dia-a-dia, então isso também é uma repressão. Separar-me do convívio de mulheres que repetem palavras vazias não vai ajuda-las a extinguir este ato, não vai fazer com que eu não escute nunca mais alguma besteira machista vindo de uma mulher. Tratar outras mulheres como inimigas por instinto da natureza não vai me fazer ter a amizade dos homens, aqueles que dominam o poder do nosso sistema atual. Percebi que fechar minha vida contra pessoas que têm opiniões diferentes de mim e criar formas de preconceito para me proteger delas é exatamente o que o machismo faz, tentando me proteger do machismo eu estava me tornando igual a eles. O machismo me isolou e assim eu me sentia exatamente como eles queriam que eu me sentisse: fraca, indefesa e sozinha. (Assim, tipo a Bela Adormecida, só pra ilustrar um pouco.)

Quem nunca se sentiu assim? Quem nunca quis ir embora pra sempre? Quem nunca sonhou em ter nascido num mundo diferente? Um mundo onde todos os seres humanos fossem respeitados e tivessem as mesmas oportunidades na vida. Um mundo onde você fosse valorizado pelo o que é e o que escolhe lutar pra ser, e nada mais fosse tão importante. Um mundo onde não se tivesse medo de ser morta, estuprada, assediada, desrespeitada por toda forma de violência física, psíquica e moral todo dia.

Um dia mulheres sonharam com este mundo antes de mim e você, assim nasceu o FEMINISMO, um movimento que foi criado não por vontade ou por diversão, mas por pura e simples necessidade. O feminismo tem como objetivo a igualdade entre os seres humanos, dizer não a discriminação baseada no gênero. Não podar garotas e garotos de fazerem o que gostam, de exercer atividades com as quais se identificam somente pelo simples fato de serem garotas ou garotos. Poderia viver toda a minha vida como um fantasma que não concorda, não pratica, mas também não combate o machismo. Poderia passar a minha vida dizendo que não preciso do feminismo. Poderia passar a minha vida sem voz. Poderia passar a minha vida toda sem viver. Mas um dia eu preferi gritar, por mim e por todas! Eu prefiro incomodar, dizer “hey! Eu tô aqui e não concordo, isso não está certo e eu não vou ficar calada e só aceitar!” Hoje eu tenho dias ruins, mal humor com o mundo às vezes, desesperança e cansaço. Mas é só às vezes, é melhor às vezes estar desanimada do que todo dia.



Sendo criada num sistema machista aprendi cedo a ser insensível, comigo mesma e com os outros, principalmente com as outras. Dizem que ser sensível é coisa de “mulherzinha”. Pois eu digo que não, sensibilidade é coisa de mulherão!