Minha mãe e meu pai não ousaram mudar de método anticoncepcional, mesmo depois da falha da tabelinha resultar na minha irmã mais velha, sendo assim menos de um ano depois eu já estava quentinho dentro de um útero e nada sabia e nada precisava saber. Mas a vida não é um útero, e resolvi sair de lá, não faço ideia porque, não sei explicar porque nasci, só sei que teve uma hora que eu chutei e sabia que alguma coisa ia acontecer, mesmo sem saber.
Nasci, uma criança branquinha e cabeluda, "coisa mar linda de tia"... Aqueles bebês que você não sabe se fica olhando "pros olhinhu bonito" ou se morde. Ainda bem que não me morderam. Cresci e apareci, desde pequeno fazia cena, não sei como eu sabia fazer, só sei que eu fazia e acertava muitas vezes em cheio, não sei explicar, algumas coisas só não faziam sentido. Por que meu pai quer que eu me vista igual a minha irmã? A gente é tão diferente, olha pra ela... Olha pra mim. Por que ele quer que eu faça isso e não aquilo? Brinque com isso e não com aquele brinquedo? Por que não posso, não posso e não posso? Descobri que as roupas que a gente usa vem de uma sacola, e que esta sacola vem da casa de uma mulher, uma casa esquisita que não tem cozinha nem quarto, só tem sala, e acho que ela gosta de visita mesmo, porque a sala tem uma porta enorme e o nome dela escrito encima, a gente nunca escreveu nosso nome encima da porta de casa, vai ver ela é doida. Mas a sacola vem de lá e eu descobri também que não tem só roupa rosa, laranja e amarela, tem roupa preta, verde e azul escuro, eu queria essa roupa, mas eu não posso ir lá buscar sozinho e meu pai já trouxe todas aquelas rosas, laranjas e amarelas. Não gosto desses rosas, laranjas e amarelas, tenho raiva deles. Mas eu não odeio todo o arco-íris que minha irmã usa, só odeio quando me obrigam a usa-lo.
Conheci a escola. Quando cheguei a professora viu que eu era diferente e riu de mim. Odeio a escola.
Conheci a igreja. Quando cheguei viram que eu era diferente e riram de mim. Odeio a igreja.
Conheci outras pessoas. Perceberam que eu era diferente. Percebi que também existem outras diferentes.
E se... E se talvez eu não seja tão diferente, só estão me olhando com os óculos errados? Eu descobri uma vez, não lembro se foi na escola ou na rua, que existem vários tipos de óculos que ajudam ou fazem alguém enxergar o mundo de um jeito ou de outro, às vezes chega mesmo a ser maneiras opostas, isso explica porque tem tanta gente se esbarrando no shopping, no trânsito, na tevê, na câmara... Um verdadeiro perigo! Não sei como o Ministério da Saúde ou da Educação não interferem nisso. Pois é, descobri então que estava me deixando ver pelos óculos errados, sendo assim resolvi tomar coragem de tentar limpar os óculos de algumas pessoas, muitas pessoas disseram que isso era um abuso, que todo mundo sabe que não se toca nos óculos alheios. Outros me agradeceram, estava realmente embaçado ou sujo. Minha irmã disse que nem tinha notado os óculos que usava, tá procurando até um novo pra comprar, acha que o antigo não serve mais. Mexer nos óculos alheios é, na maior parte dos casos, ferir a honra, teve épocas de isso levar à morte. Mas percebi que se não fizesse isso quem estava morrendo era eu. Então hoje eu tenho nome e sobrenome. Me chamem de O Homem que Limpa Óculos. Não tenho medo de governo, escola ou igreja. Não tenho medo do vento, da maré ou da moda. Se quiser posso, sem você perceber, primeiro te mostrar como seus óculos estão sujos, e quem sabe, assim, você mesmo não resolve limpar toda essa miséria e imundície que te precede? Já é um começo, não?
terça-feira, 21 de julho de 2015
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